terça-feira, 23 de julho de 2013

Nástio Mosquito - Se eu Fosse Angolano


Antes de apertar play neste trabalho um aviso prévio: Nástio não é “The Voice”! Todo aquele para quem uma voz doce e cristalina seja critério absoluto para conseguir apreciar um disco/artista, não estará a vasculhar no lixo certo. No entanto, como alguém que ouviu pela primeira vez uma faixa do Nástio por volta de 2006/2007, devo dizer em seu abono que com o tempo (e, certamente, a prática) ele aprendeu a usar as suas limitações vocais e tirar delas o melhor partido, não desafina de todo, logra sem grande esforço imprimir uma carga emocional/dramática nas suas notas fortes e chega a ter alguns rasgos de beleza no timbre grave. Para além disso, o rapaz é maleável, vai da performance vocal para uma oralidade mais spoken word com o à vontade camaleónico de alguém que estudou drama, ou com o dom inato da arte da interpretação.

O Nástio é um artista completo, complexo, cheio de pormenores e detalhes que normalmente escapam à primeira escuta e este trabalho não foge à regra, desvendando-se aos bochechos na comunicação entre o tímpano e o cérebro, fazendo com que este último processe a informação e nos retribua “??!?!?” ao invés da lógica binária que melhor sabemos interpretar. O resultado? Emoções reticentes no sentir, também elas objecto de análise subsequente: gostei desta música? O que ela me diz? Qual é afinal a opinião do artista? Estou de acordo? O que é isto? Isto normalmente assusta o ouvinte comum que, ficando confuso, determina simplesmente que “não gosto”, com o receio de estar a gostar de algo com o que não concorda.

Também a musicalidade (no que toca as composições rítmicas) do Nástio veio acumulando camadas de maturação que a consolidaram como muito própria, única mesmo eu diria. Neste disco existe uma incrível coesão entre as 11 faixas que o compõem apesar de ter sido produzido entre dois países e, logo, com músicos diferentes. Pode ser que seja um disco conceptual, que siga uma orientação musical deliberadamente definida para criar a atmosfera ora maravilhosamente melódica, ora algo fantasmagórica e que no próximo disco ele transite do Trip-hop (estou abusivamente a etiquetar o álbum, anunciando desde já que deixo espaço para eventual alteração que provenha do próprio), para o Punk, Cumbia, Ska, Reggae, Kuduro, Drum n Bass, Kizomba, enfim, o que lhe der na telha, pois o rapaz não é claramente alguém que se conforme a normas musicais fronteiriças. Seja qual for o caso, este é um disco para lá de audível, é muito agradável musicalmente e muito rico em termos de conteúdo lírico, no sentido hiphopiano do termo. Mas justamente nesse último quesito o Nástio revela que não faz questão de abdicar da sua irreverência e que não irá facilitar a vida a quem queira compreendê-lo. Confesso que tentei e fui bem sucedido (ou pelo menos dei-me por feliz com as minhas conclusões) algumas vezes, mas noutras, muitas, falhei miseravelmente e aceitei simplesmente o facto que as vezes é preciso deixar o nosso coração e subconsciente reagirem instintivamente ao estímulo que o artista consegue provocar, sem tentar ser excessivamente cerebral.

Uma coisa é certa e inquestionável: este álbum está carregadíssimo de teor político, com análises ácidas de fenómenos sociais paridos pela nossa pátria “potencialmente patética” que definha nas mãos de um punhado, fonte da deterioração dos valores que fazem com que “Kanuku quer fazer massa, mamã quer fazer massa, homem da massa quer massa” e que o frustrado seja levado a dizer: “Estou perdido e não quero me encontrar, Para quê? Se no fim vão só me maltratar”.

No tema Demo da Cracía, Nástio não se inibe de citar alguns culpados pelo marasmo em que vive a humanidade proveniente daquela latitude do globo (e não só), usando vocábulos praticamente banidos da música angolana. Nástio faz de observador imparcial sem assumir bandeiras, varrendo todos para o mesmo insonso vómito de pretensos salvadores da pátria, sugerindo que a história da nossa democracia se resume a “Viva MPLA-ya, viva UNITA-ya, viva FNLA-ya”. Não é preciso dizer muito mais. Também não é difícil perceber que este tema sozinho pode carimbar o selo de “artista non grato” no seu “passaporte artístico” e remetê-lo para a lista negra de pessoas cujos nomes não devem sequer ser citados. Mais forte de tudo, o mano escolheu este tema como SINGLE do álbum, dando-lhe uma roupagem Kizomba, com ajuda inestimável do Kennedy (ver o 2º vídeo abaixo).

Identifica (o excesso de) “auto-estima, ambição profissional, orgulho no mérito” como ingredientes principais para o emagrecimento compulsivo da alma do angolano, ou parece-me a mim ser isso que ele quer dizer.

Dizer que Nástio não evita temas sensíveis e tabu seria minimizar a postura revelada neste disco, pois ele não só não evita como faz questão de as confrontar, povoando grande parte da sua temática em assentamentos de areias movediças como: drogas, política, religião, escravatura, abandono social, exploração sexual, racismo. Num álbum de 11 faixas, podemos dizer que ele será o único a fazê-lo, se excluirmos alguns protagonistas do género Hip Hop. O facto de ser por vezes muito codificado é frustrante para quem deseja render-se ao artista, sendo incapaz de decidir se se identifica com o que defende, mas, repito, muito corajoso.

No tema “Arco-Íris” há uma abordagem de uma rara imparcialidade sobre os preconceitos de parte a parte (clichés tornados dogmas acerca de brancos e pretos) e no “Escravatura nos Pertence” ele ousa desafiar aos angolanos/africanos encararem a sua quota-parte de responsabilidade no holocausto da escravatura.

Estava por exemplo a ouvir a faixa “Existo”, que musicalmente foi uma das que menos captou a minha atenção e já ia na fase de piloto automático em que não mais tenciono apanhar dor-de-cabeça tentando decifrar as charadas do Nástio, quando sou arrebatado com uma força inenarrável da minha indiferença por uma sequência de frases dignas de um filme de Gaspar Noé: “Violei minha sobrinha, violentei a filha da vizinha, minha filha teve mesmo sorte, não lhe apanhei sozinha”! AHHHHHHHHHHHHHHH! Rebobina essa merda, volta para trás, põe do início, escuta com (mais) atenção, não tenta partilhar essa (atenção) com outras tarefas, o Nástio não é artista para tentar escutar em modo multi-tasking. A música é uma narração da mente distorcida de um violador!

Temas mais “luminosos” são sem dúvida os influenciados pelo Semba e pela Kizomba: “Tecnologia do Ancião”, um ode aos nossos mais-velhos e “Desabafo de um Angolano Qualquer”, ambos cheios de esperança e positividade, sons para curtir de olhos fechados e deixar-se emocionar.

Se às vezes gostava de entender melhor qual é a sua opinião ou o que ele pretende comunicar (ouvir “Volta”), tarefa que propositadamente não facilita com frases que resguardam e se escusam de obviar o que pensa, tenho de lhe reconhecer o grande mérito de ser incomodativo, irreverente, provocador, demolidor de dogmas, interventivo, incisivo, destemido, avant-garde, enfim, artista! Se juntarmos a todas essas qualidades os factos de: 
1) O disco ter sido disponibilizado de forma gratuita na sua página; e
2) O artista ter optado com exclusividade para o uso da língua portuguesa (ele domina perfeitamente pelo menos o inglês e não é nenhum purista do idioma oficial); 
Levando em conta que a sua actividade artística se realiza predominantemente no estrangeiro, o orgulho que sinto é elevado a um expoente com alguns zeros à direita!

Nástio conquistou um lugar entre os raros angolanos que conseguiram arrebatar-me e revitalizar a minha esperança na nossa música nestes últimos anos: Aline Frazão, Phay Grand e Sanguinário, sendo dentre eles, sem sombra para dúvida, o mais enigmático.


DEMO DA CRACÍA REMIX (EXTENDED) from DZZZZ ENT. on Vimeo.


Catem o mambo aqui

3 comentários:

nickche disse...

cai leve no ouvido...

Anônimo disse...

O mambo já não está catável, não dá para subir outra vez?

ikono disse...

O link continua a funcionar. Qual é a tua dificuldade man@?